G1 conversou com especialistas entender melhor o que não sabemos sobre a Covid-19. Subnotificação e falta de conclusão sobre níveis de imunidade são obstáculos; saiba por que esses dados são importantes para entender a situação do país. 13 de maio: trabalhador usando roupas protetoras desinfeta um shopping contra a Covid-19 em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul.
Sílvio Ávila/AFP
É consenso de especialistas ao redor do mundo que, por causa da subnotificação, o número real de casos e mortes de Covid-19, a doença causada pelo coronavírus, são bem maiores do que apontam as estatísticas oficiais. Ao mesmo tempo, o entendimento geral é que países como Itália e Espanha provavelmente já passaram pelo pior da pandemia.
Mas como é possível assegurar isso? Quais informações são necessárias para entender uma pandemia? Que conclusões os estudos permitem obter?
O G1 conversou com médicos e cientistas para destacar alguns dados que ainda não temos sobre a pandemia de Covid-19 – principalmente no Brasil. Os pesquisadores falaram também sobre como esses elementos poderiam ajudar a entender melhor o avanço da doença no país.
Número de casos
Número de mortes
Níveis de imunidade para o vírus
Disseminação nas periferias
1. Número (real) de casos
12 de maio: rua cheia em Florianópolis em meio à pandemia de Covid-19
Eduardo Valente/AFP
Por que não sabemos?
Porque não testamos todos os casos: basicamente, só faz o teste quem é internado e/ou morre, ou seja: os pacientes mais graves da doença. Quem tem sintomas leves ou mesmo não tem sintomas não é testado – e as estimativas dos cientistas, até agora, é de que 80% dos casos de Covid-19 sejam de pacientes assintomáticos ou com sintomas leves.
Podemos saber?
Segundo os especialistas, não. Um dos motivos é justamente o fato de que a vasta maioria dos pacientes não têm sintomas da doença. Mas não é só isso: mesmo para pacientes com sintomas, faltam testes diagnósticos e capacidade de análise dos laboratórios, o que aumenta o tempo de espera pelos resultados.
Para Paulo Lotufo, epidemiologista da Faculdade de Medicina da USP, o método inicial de rastreamento de casos, inclusive na Organização Mundial de Saúde (OMS), foi equivocado.
“O raciocínio foi como se estivesse tendo uma epidemia de meningite – que tem um número menor de casos, não existem assintomáticos e o diagnóstico é rápido, são os casos confirmados. Mas não é isso”, explica Lotufo. “A gente nunca vai saber quantos casos existem. Não dá.”
Pedro Hallal, epidemiologista e reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, concorda. “A OMS subestimou o potencial da doença. Houve uma falta de percepção de que essa doença [se] transmitia principalmente pelos assintomáticos, então se pensou ‘a gente restringe a circulação do vírus e mata’. Mas tem a estimativa de que 80, 90% dos casos são assintomáticos. As pessoas não sabiam que tinham a doença, então transmitiam”, lembra.
Desde o início da pandemia, a OMS vem reiterando que é necessário testar todos os pacientes, isolar, tratar e traçar os contatos de todos os casos. (Os testes a que a organização se refere são os do tipo PCR, que detectam o DNA do vírus no corpo e são mais sofisticados. São diferentes dos testes sorológicos, que detectam anticorpos).
“Essa lógica de testar e isolar é baseada no começo da epidemia. A transmissão é comunitária [agora]”, avalia Hallal.
Paulo Lotufo, da USP, argumenta que a testagem de todos os casos não deveria ser a prioridade.
“Fazer testes a esmo não vai significar nada. Está perdendo dinheiro. Na minha opinião, os testes deveriam ser feitos somente nas pessoas da saúde, segurança – policial, bombeiro, defesa civil –, transporte, pessoal da indústria alimentícia – frigoríficos e outras coisas”, defende.
Apesar de não ser possível saber, exatamente, quantos casos de Covid-19 o país tem, vários cientistas têm feito estimativas.
O físico Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, é um dos autores de um modelo que estimava que, até segunda-feira (11), o Brasil tinha mais de 2,3 milhões de casos de Covid-19. O número oficial registrado pelo Ministério da Saúde naquela data era de 168,3 mil casos. Os cientistas estimaram a quantidade real de casos no país a partir do número de mortes notificadas.
Para o físico, os pacientes assintomáticos são a “chama” que está espalhando a epidemia de Covid-19. “Se você é assintomático, como nós não estamos fazendo teste, nós não sabemos dessas pessoas”, explica Domingos.
2. Número (real) de mortes
11 de maio – Sepulturas de pessoas que morreram nos últimos 30 dias enchem uma nova seção do cemitério de Nossa Senhora Aparecida, em Manaus
Felipe Dana/AP
Por que não sabemos?
Por causa da subnotificação. (Veja vídeo, mais abaixo, de reportagem do Jornal Nacional). E ela ocorre por dois motivos, segundo os especialistas ouvidos pelo G1:
existem pessoas morrendo de Covid cujas certidões de óbito apresentam outra causa para a morte (por exemplo, insuficiência respiratória, pneumonia ou síndrome respiratória aguda grave, conhecida como SRAG), porque elas não foram testadas;
existem pessoas que morrem de Covid e que foram testadas para a doença, mas os resultados demoram a sair, e, por isso, as mortes são notificadas com atraso.
Por causa dessa demora, explica Domingos Alves, é comum que o número de mortes divulgado em um determinado dia seja referente, na verdade, a uma ou duas semanas antes daquela data.
“As pessoas têm que entender que esses óbitos aconteceram há, no mínimo, uma semana atrás. Ou duas. Então, quando eu estou olhando o número total de óbitos, hoje, é o que está esperando [o resultado do teste] há no mínimo uma semana atrás. Porque essa é a demora média que tem entre o cara ser internado, ir a óbito e sair o exame”, explica.
Isso dificulta saber em que ponto estamos da curva de disseminação do vírus, afirma Paulo Lotufo. Ele defende que os resultados dos exames sejam colocados em uma “linha do tempo” de acordo com a data de óbito da pessoa, e não a de confirmação do diagnóstico de Covid (como é feito atualmente).
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Já os pacientes que morrem e não estão sendo testados aparecem em outras estatísticas. Segundo dados da Fiocruz, o Brasil já tem, neste ano, mais de 5,5 mil mortes por SRAG, número maior que a média registrada entre 2010 e 2019.
“Existe uma subnotificação de pessoas que estão indo a óbito por SRAG numa pandemia de Covid, ou seja: está indo na certidão de óbito que ela teve SRAG, quando, na verdade, é Covid”, afirma Domingos Alves.
Podemos saber?
Podemos ter uma ideia. Para Paulo Lotufo, da USP, a chave para saber a quantidade real de pessoas que estão morrendo está na comparação entre o número geral de mortes neste ano e a média histórica.
“A mortalidade tem, em todos os lugares, uma sazonalidade. E a variação que existe de um ano para o outro é de 1% a 2%, para cima ou para baixo”, explica Lotufo. Na semana passada, ele fez uma análise exclusiva para o G1 mostrando que, na cidade de São Paulo, as mortes estão 28% acima da média histórica. “Só pode ser a Covid”, argumenta.
(Outro levantamento mostra, ainda, que as mortes por síndrome respiratória aguda grave na capital cresceram quase 100 vezes na pandemia).
Ajustando o número de mortes ao tamanho da população (por milhão de habitantes), o Brasil tinha 62,6 mortes/milhão até quarta-feira (13), a menor taxa entre os 10 países com mais mortes. O índice é divulgado com frequência pelo Ministério da Saúde para comparar a situação brasileira internacionalmente.
Mas há alguns detalhes importantes nesse indicador. “Usar essas taxas pode ser enganoso”, alerta Dalson Figueiredo, cientista político professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A questão, afirma, é observar a velocidade de aumento do índice.
Ele e outros pesquisadores calcularam, em um artigo publicado na revista “Questão de Ciência”, que o Brasil foi o país com aumento mais rápido no número de mortes entre os dias 15 de abril e 2 de maio. O aumento brasileiro foi de 328,57%. A Inglaterra, em segundo lugar, teve aumento de 126,26% na taxa.
“A motivação para se usar a taxa é garantir a comparabilidade – entre países ou localidades com a população muito diferente. O que a gente observou é que a taxa de infecção do Brasil e a taxa de mortalidade estão crescendo muito rápido. Ela ainda é pequena, com relação à França e à Espanha, mas a variação no tempo está mais rápida. A nossa taxa está se movendo num ritmo mais acelerado do que a taxa nesses países”, explica Dalson.
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Outra questão importante de ser observada, lembra Pedro Hallal, é que países com maior expectativa de vida – ou seja, população mais velha – tendem a se sair pior na pandemia, porque a Covid tende a ser mais grave nos idosos.
Hallal lembra, ainda, que os estados brasileiros têm curvas epidêmicas diferentes. “Não quer dizer que todos terão o quadro de Manaus. A verdade é que qualquer epidemia pega mais em alguns lugares do que em outros – a pandemia não vai ‘pegar’ igual em tudo quanto é lugar”, afirma.
3. Níveis de imunidade para o vírus
21 de abril, Brasília: agente de saúde mostra testes rápidos para detecção de Covid-19 no Estádio Mané Garrincha.
Evaristo Sá/AFP
Por que não sabemos?
Porque as pesquisas científicas ainda não chegaram a uma conclusão. Não se sabe, por exemplo, por quanto tempo as pessoas que já tiveram o vírus ficam imunes a ele.
Para os vírus da Sars e da Mers, que são da família do Sars-CoV-2 (nome do novo coronavírus), já houve estudos, isolados, que apontavam imunidade de anos, afirma Natália Pasternak, bióloga especialista em microbiologia e presidente do Instituto Questão de Ciência.
Por outro lado, os vírus que causam os resfriados também são da família dos coronavírus. E, para esses, a imunidade humana dura apenas alguns meses: por isso, é possível se infectar várias vezes pelo mesmo vírus, explica Natália.
“É provável que a gente tenha imunidade e que ela dure pelo menos alguns meses ou um ano, pelo menos. E com isso a gente vai ganhar tempo”, diz.
Por não sabermos quanto tempo dura a imunidade para a Covid-19 é que é difícil estabelecer os chamados “passaportes de imunidade”, ideia lançada em países como Itália e Alemanha. Com esses “passaportes”, pessoas que apresentassem anticorpos (defesas do corpo) para o vírus, por meio de exames sorológicos, poderiam retomar suas atividades.
Outra questão, que também envolve a imunidade, é a das vacinas, lembra Natália. Como não existe uma vacina para a Covid-19, não sabemos, também, o quanto de proteção elas vão oferecer. Se elas precisarem ser aplicadas mais de uma vez, por exemplo, isso implica mais trabalho ainda na produção e distribuição delas.
“A gente tem vacinas que estão na frente na corrida, já estão sendo testadas em humanos, mas não necessariamente elas vão ser as melhores vacinas. Elas só são as primeiras”, explica Natália.
“Então o quanto de proteção a vacina vai oferecer, como a gente vai fazer para produzir em larga escala, vai ter que vacinar 7 bilhões de pessoas, como é que faz? Tem muita coisa que a gente não sabe”, diz.
Um outro ponto, ainda relacionado à imunidade, é que não sabemos quantas pessoas já foram infectadas sem apresentar sintomas e podem, portanto, contribuir para a chamada “imunidade de rebanho”.
O termo se refere à proteção indireta contra uma doença infectocontagiosa que ocorre quando uma população se torna imune a ela, ou por vacinação ou por já ter sido contaminada. Uma vez que essa imunidade de rebanho tenha sido estabelecida por um tempo, a capacidade da doença de se espalhar é diminuída.
Mas estudos feitos em outros países apontam que a percentagem de pessoas que já foram infectadas com a Covid-19 ainda é muito baixa para que se possa apostar na imunidade de rebanho como uma forma de contenção do vírus.
Podemos saber?
No Brasil, um estudo liderado pela UFPel tenta descobrir esses níveis de contaminação na população geral, testando as pessoas aleatoriamente com exames sorológicos. Já foram feitos exames em algumas cidades do Rio Grande do Sul, e, nesta semana, começaram testes em outros estados.
Para Pedro Hallal, reitor da universidade, o estudo é essencial para contribuir com o que chama de “inteligência epidemiológica” – informações sobre quantas pessoas já foram expostas ao vírus mas foram assintomáticas ou tiveram sintomas leves, além de saber a letalidade real da Covid-19 no Brasil, por exemplo.
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(A letalidade de uma doença é calculada dividindo-se o número de mortes pelo número de infectados. Só que, quando um país não consegue testar todos os infectados – como é o caso do Brasil –, não é possível determinar com certeza essa taxa no país.)
4. Disseminação nas periferias
1º de maio: Moradora carrega caixa de doações em uma campanha organizada em Brasilândia, distrito no norte São Paulo onde mais se morre por Covid-19 na cidade.
Amanda Perobelli/Reuters
Por que não sabemos?
Porque é possível que os dados não existam, afirmam especialistas ouvidos pelo G1.
“Em relação à disseminação da doença em favelas, os modelos epidemiológicos existentes têm dificuldade para lidar com isso. Você não ter água, não ter saneamento básico é um complicador adicional quando tem uma doença que depende de higienização das mãos, de forma geral. A gente não tem nenhum documento sistemático sobre isso”, explica.
Para entender a disseminação do vírus nas periferias, explica Ricardo Lustosa, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba), seria necessário testar a população, por amostras, para se ter uma ideia da quantidade de pessoas infectadas. Mas a falta de testes faz com que se trabalhe “no escuro”.
“Falta a noção exata da dispersão nas comunidades – o único indicativo é a confirmação de casos que o governo dá”, explica.
Marcos Ennes, professor do Departamento de Ciência da Computação da Ufba, avalia que não é possível fazer estimativas para as periferias considerando um isolamento social.
“Isso não vai existir [nas comunidades]. Isso eu acho que é praticamente impossível. O que tem se pensado fazer é considerar a densidade populacional – ter ideia de quantas pessoas moram [ali]. Se eu tiver uma pessoa infectada, ela vai infectar mais X”, avalia.
Ennes e Lustosa trabalham em um projeto para mapear demandas das comunidades periféricas de Salvador no enfrentamento à pandemia, assim como surtos de Covid-19 nessas comunidades.
Ainda no quesito do isolamento, a urbanista e demógrafa Suzana Pasternak, professora da USP, avalia que o enfrentamento da doença nas periferias pode passar por uma outra solução de urbanização das favelas, por exemplo.
“Pensar em uma solução habitacional que inclua ventilação, iluminação. Como abrir uma janela se é uma casa grudada na outra? Enquanto tiver gente amontoada, o vírus vai atacar”, lembra.
Podemos saber?
Ricardo Lustosa reforça que seria necessário testar a população para ter mais informações. No caso de Salvador, cujo relevo é marcado por vales, doenças como dengue, chikungunya e leptospirose costumam se concentrar nos fundos desses vales, onde há mais esgotos e mosquitos – e onde mora a população mais pobre. O pesquisador acredita que a situação não vá ser diferente para a Covid-19.
“A partir das características que a gente já conhece dos vírus, pode criar hipóteses – pressupor que, nesses locais de elevada aglomeração, se você associar isso à baixa nutrição, estresse, você aumenta as chances [de contágio]”, avalia.
“O problema da periferia é essa questão histórico-cultural que já se reflete em outras zoonoses, como a leptospirose, dengue e chikungunya. Quem ocupa essas áreas são negros – não é uma coincidência”, ressalta.
14 de maio, Rio de Janeiro: moradores do abrigo público de Stella Maris aguardam enquanto soldados desinfetam o local para prevenir a diseminação da Covid-19.
Mauro Pimentel/AFP
Alguns levantamentos já apontam a relação entre morar em periferias e maior risco de morte pela Covid. Em São Paulo, dados da Prefeitura do final de abril mostram que, nos bairros mais pobres da cidade, a chance de morrer por Covid-19 é 10 vezes maior.
Em Recife, segundo Dalson Figueiredo, da UFPE, a relação também se sustenta.
“O que os resultados preliminares de estudos existentes indicam é que, quanto maior a vulnerabilidade social, maior a letalidade da doença. Em bairros mais vulneráveis, a chance de morrer é maior”, afirma Dalson Figueiredo.
E o recorte das mortes não é apenas socioeconômico: é também racial. Em São Paulo, as pessoas que se autoidentificam como pretas (conforme classificação do IBGE) têm 62% mais chances de morrer pela doença do que as brancas.
Há cerca de um mês, um análise do Ministério da Saúde também apontou disparidade nas mortes pela cor da pele. Um dos motivos associados foi, justamente, a desigualdade social.
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