Covid-19 impõe ‘carga mais pesada’ à rotina de mães cientistas, apontam brasileiras em carta na Science


O texto publicado na revista, uma das mais respeitadas no mundo, alerta que permanecer em casa pode prejudicar o trabalho de mães cientistas por causa do maior tempo dedicado aos filhos e às tarefas domésticas. Integrantes do ‘Parent in Science Movement’ fazem reunião por videoconferência em meio à pandemia do coronavírus. Cientistas do grupo escreveram carta alertando que mães cientistas podem ter impactos negativos na carreira com a pandemia.
Arquivo pessoal/Pâmela Carpes
Em carta publicada nesta sexta-feira (15) na revista científica “Science”, uma das mais importantes do mundo, cientistas brasileiras alertaram que a pandemia de Covid-19 pode trazer impacto negativo para as carreiras de mulheres que são cientistas e mães.
Isso porque, com as medidas de isolamento social determinadas ao redor do mundo, o tempo a mais em casa não significa necessariamente, no caso de mães cientistas, mais tempo para pesquisa (confira a íntegra da carta ao final da reportagem).
“Embora os pais acadêmicos não sejam imunes aos impactos do confinamento, tradicionalmente são as mulheres que carregam a carga mais pesada”, argumentam as pesquisadoras na carta.
O texto tem a assinatura de 14 pessoas (13 são mulheres) e do “Parent in Science Movement”, movimento brasileiro que busca entender o impacto da maternidade na carreira científica de mulheres. O grupo foi criado em 2016 e tem cerca de 20 integrantes – incluindo um pai.
Para tentar evitar o prejuízo à carreira das mulheres, as cientistas pedem, na carta, que sejam adotadas políticas mais flexíveis, como o adiamento de prazos para pedir financiamentos.
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“A maior parte dos cuidados de casa, dos filhos, de algum parente idoso acaba ficando com as mulheres. E para a carreira científica isso tem um impacto muito grande”, afirma Pâmela Mello Carpes, professora no curso de fisioterapia na Universidade Federal do Pampa, em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul.
Integrantes do movimento brasileiro Parent in Science com os filhos e filhas
Parent in Science Movement
Na pandemia, essa carga extra pode se agravar, alerta Carpes. “Quando veio a situação de trabalhar em casa, muitos dos nossos colegas homens consideram que é um período bom – de se dedicar exclusivamente à pesquisa. Para quem tem filho, essa realidade não existe, porque as crianças não estão na escola. E isso acaba sobrecarregando mais as mulheres do que os homens”, afirma.
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(Na semana passada, um questionário feito pelo jornal americano “The New York Times” com 2,2 mil pessoas constatou que 80% das mulheres entrevistadas afirmam ser a pessoa que passa mais tempo ajudando os filhos com tarefas escolares. Só 3% delas disseram que o marido ajuda mais).
“Para as mães solo, a sobrecarga é ainda maior”, diz Carpes. “E isso vai ter um impacto muito grande na diferença da produção científica.”
E, quando o avanço na carreira depende justamente da produtividade científica, isso faz com que as mulheres “fiquem pelo caminho”. Começar uma carreira científica não é o problema, mas, à medida que o tempo passa – e elas têm filhos –, o que ocorre é um fenômeno já conhecido, que se assemelha a um “cano gotejando”: elas não chegam ao topo da carreira.
“Para aquelas que ainda não ‘gotejaram do cano’ e estão lutando para continuar suas carreiras, esses meses de tarefas mais pesadas podem aumentar a distância entre elas e os colegas homens e sem filhos”, argumenta a carta desta sexta (15).
Um relatório de 2017 sobre a ciência no mundo, feito pelo grupo Elsevier, mostra que, naquele ano, 49% dos cientistas no Brasil eram mulheres. Mas elas representavam 36% do número de bolsistas de produtividade em pesquisa no país (classificação do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento que marca a excelência em uma área).
No Prêmio Nobel, o contraste é ainda maior: dos 950 vencedores do prêmio, 53 são mulheres, cerca de 5,6%. (Marie Curie foi a única mulher a vencer duas vezes).
“Se a ciência fosse feita por grupos de pesquisa mais diversos, a gente acabaria tendo uma ciência melhor, de mais criatividade, com experiências de vida diferentes. Esse é um aspecto que sem dúvida justifica ter a participação igual”, avalia Pâmela Carpes. “E tem a questão dos direitos – por que não poderia estar em igualdade nesses espaços?”, questiona.
Veja a íntegra da carta publicada na revista ‘Science’:
“À medida que a vida cotidiana para em todo o mundo em resposta à pandemia da Covid-19, profissionais estão se adaptando a uma nova realidade de trabalho remoto. Para muitos pesquisadores, a liberação das atividades de ensino e administrativas significa mais tempo para o trabalho independente.
Por outro lado, pais de crianças pequenas cujas aulas foram canceladas enfrentam responsabilidades desafiadoras. Embora os pais acadêmicos não sejam imunes aos impactos do confinamento, tradicionalmente são as mulheres que carregam a carga mais pesada.
Essas mulheres correm o risco de sofrer mais uma penalidade da maternidade. Em vez de escrever artigos, é provável que dediquem tempo a educar as crianças em casa e às tarefas domésticas. Para aquelas que não ‘gotejaram do cano’ e estão lutando para continuar suas carreiras, esses meses de tarefas mais pesadas podem aumentar a distância entre elas e seus colegas homens e sem filhos.
A desigualdade de gênero na ciência é uma questão urgente e a maternidade desempenha um papel importante nela. Os últimos anos testemunharam o surgimento de muitas iniciativas que desencadearam mudanças para solucionar esse problema. Não podemos permitir que essa pandemia reverta avanços e aprofunde ainda mais a lacuna de gênero na ciência.
Políticas e ações para mitigar a penalidade da maternidade podem beneficiar todos os cientistas. Os prazos para propostas de financiamentos, relatórios e solicitações de renovação devem ser adiados. As agências de financiamento devem considerar a criação de programas de concessão projetados em torno da realidade de acadêmicos com famílias. Ao instituir políticas mais flexíveis, podemos tornar a ciência mais justa para todos os afetados pela pandemia.”
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By Negócio em Alta

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