Cinzas podem se tornar ameaças à vida aquática; qualidade da água afetaria comunidades. Mais de 10% do território do Pantanal foi atingido pelas queimadas
Ernane Junior/Acervo Pessoal
Olhar para o cenário de devastação no Pantanal brasileiro é clamar pela chegada das chuvas intensas que estanquem o fogo. O caminho das águas, porém, pode carregar resquícios da tragédia e até se tornar uma consequência de novos problemas ambientais no bioma. É o que discutem pesquisadores da Embrapa Pantanal e da Embrapa Meio Ambiente.
Se situações como a que está ocorrendo este ano se repetirem sistematicamente todos os anos, podemos ter um impacto significativo no longo prazo, que implicaria em perdas de matéria orgânica do solo, diminuição da fertilidade e da biodiversidade
O bioma, naturalmente, oscila entre períodos de “seca” e “cheia” dos rios. É comum também que durante as fases de baixa do nível das águas se desenvolva uma enorme quantidade de vegetação rasteira. Quando o nível volta a subir, devido ao início das chuvas, as plantas que não são adaptadas a ficarem submersas, morrem. E com a vida, levam também o oxigênio das águas, tornando o ambiente impróprio para animais aquáticos, o que provoca a mortandade de peixes.
Reportagem de 2013 mostra decoada provocando mortandade de peixes em MS; fenômeno conhecido no bioma
Todo esse processo, chamado de decoada, é movido unicamente pela força da natureza, embora pareça obra de ação humana. “As águas ficam com cor de chá preto, têm cheiro de podre ou de material em decomposição, apresentam óleos vegetais, espuma e os moradores locais reclamam do gosto”, explica Márcia Divina de Oliveira que estuda a qualidade de água de rios e áreas inundáveis pela Embrapa Pantanal.
Por ser um processo natural, até mesmo as perdas são equilibradas, de certa forma. “Se por um lado, a decoada representa vulnerabilidade ou morte de peixes e outros animais, durante a decoada, é possível ver grandes quantidades de aves se aproveitando desse momento para suas reservas energéticas”, descreve a pesquisadora. Um fenômeno observado normalmente entre fevereiro e abril, quando as chuvas já anunciaram a temporada no Pantanal.
Garça-moura caça pacupeva e é clicada por fotógrafo da natureza
Ernane Junior/VCnoTG
Mas, no ano 2020, o período de cheia poderá carregar “lembranças” da passagem do fogo. É o que destaca o pesquisador Pedro Gerhard da Embrapa Meio Ambiente que analisa o comportamento de comunidades de peixes em riachos brasileiros: “é bastante provável que cinzas sejam encaminhadas para os rios com as chuvas, provavelmente em uma magnitude que não se observa há muitos anos ou que nunca se tenha observado. É possível, sim, que isso traga um grande impacto sobre os peixes e sobre toda a fauna e flora aquática”.
Ameaças a esse ambiente significam também o comprometimento da saúde de todo o ecossistema, já que moram nas águas a base da cadeia alimentar pantaneira. Mas os problemas poderão ser ainda maiores. Ricardo Figueiredo, da Embrapa Meio Ambiente, estuda a ciclagem biogeoquímica, o movimento dos elementos químicos encontrados nos diversos componentes da natureza. Seja no Pantanal ou em qualquer outro ambiente, essas trocas dos elementos acontecem de forma natural, mas podem ser descompensadas.
Quati busca por comida em meio ao cenário de seca no Pantanal
Frico Guimarães/Documenta Pantanal/BBC
“Em um regime de cheia e vazante, a água é arrastada nos cursos d’água e os grãos de solo e os elementos químicos também. Quando você tem a queima da vegetação, você perde a proteção do solo, as raízes e a matéria orgânica”, descreve ele. Em um cenário como este, há um aumento no fluxo desses elementos, uma explosão da população de algas e um prejuízo à vida da fauna aquática.
Sem a “filtragem” dos nutrientes pelas plantas, o sistema desestabilizado gera também uma redução na qualidade da água, um processo que não prejudica somente a vida dos animais. “É preciso lembrar que populações ribeirinhas utilizam das águas de rios, corixos e baias para consumo e que o menor volume de água concentra mais algas, bactérias e patógenos, que podem ser prejudiciais à saúde”, destaca Márcia Divina de Oliveira.
Além das cinzas, deve ser considerado também o transporte de sedimentos para os rios, pois o solo exposto pela queimada estará mais sujeito à erosão. Será como se essas áreas terrestres tivessem sido muito adubadas e sem o controle adequado
Os pesquisadores da Embrapa Pantanal, porém, destacam que os rios, hoje, encontram-se em volumes tão baixos que, sem chuvas abundantes na bacia do Rio Paraguai, a interação com a planície será pequena e a decoada talvez nem seja observada. Pedro Gerhard ainda complementa as previsões: “é possível que a maior parte desses ecossistemas se recupere (ao longo de anos ou décadas), mas também é possível que em alguns locais esses ecossistemas se transformem em outros ambientes”.