Na madrugada do dia 22 de março, os brasileiros foram surpreendidos com a Medida Provisória 927/2020, publicada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), mudando uma série de regras trabalhistas.
A justificativa era garantir empregos, em um momento de crise provocada pela pandemia de coronavírus. Na segunda pela manhã (23) o assunto estava nas redes e na imprensa. Nesse mesmo dia, Bolsonaro publicou uma nova MP, a 928/2020, que revogou o artigo mais criticado da anterior – que autorizava a suspensão de salários por quatro meses – e alterou a lei de acesso à informação.
Um dia depois, na terça (24), o presidente foi a público num pronunciamento em rede nacional dizendo que a imprensa estaria provocando uma histeria coletiva e que o isolamento social não deveria ser uma prática radical. Segundo Bolsonaro, as crianças deveriam voltar à escola e o comércio voltar a funcionar, o que faria cair por terra a justificativa para a publicação de ambas iniciativas de seu próprio governo.
Nesta entrevista, o sociólogo do trabalho e professor da Universidade Estadual de São Paulo (USP) Ruy Braga ajuda a entender o vaivém discursivo e as medidas difusas de Jair Bolsonaro.
Diversos movimentos sociais já estão chamando a primeira Medida Provisória como a MP da Morte. Quais são os principais impactos que ela traz?
Ruy Braga – Ela aprofunda a Reforma Trabalhista num contexto de calamidade pública. Representa um total descaso, uma enorme insensibilidade, uma atitude criminosa para com os trabalhadores que se encontram numa condição de insegurança, como todos os cidadãos. Mesmo que o governo tenha revogado o parágrafo 18, que diz respeito à suspensão de salário por quatro meses, a prevalência do negociado sobre o legislado permanece num plano ainda superior ao que temos na Reforma Trabalhista. Essa negociação se generaliza para o plano individual, ou seja, agora o trabalhador individualmente pode negociar com a empresa a suspensão de direitos, as garantias negociadas pela categoria, e está descartada por completo a presença do sindicato nessa negociação. Ou seja, o trabalhador estaria desprendido de qualquer tipo de garantia trabalhista ou negociada pela sua categoria.
Além disso, tem a ver com um problema que temos acompanhando há algum tempo que é um ataque sistemático à fiscalização do trabalho. O que a MP aponta é uma total desresponsabilização das empresas relativamente a questões ligadas à saúde do trabalhador e à própria exploração da força do trabalho e insegurança no ambiente do trabalho. Tudo que diz respeito à fiscalização do trabalho está praticamente suspenso por um período de quatro meses. No entanto, após esse período, quando houver uma retomada da atividade econômica, a MP já terá aberto caminho para uma desregulamentação, tornando irrelevante a fiscalização do trabalho num futuro próximo.
Finalmente, um problema também tratado na MP que acho muito grave diz respeito à flexibilização da jornada de trabalho, em especial, no tocante aos trabalhadores da saúde que são a linha de frente no combate a essa pandemia. Essa flexibilização [da jornada de] 12 horas por 36 é algo perverso, no ponto de vista da saúde pública, porque acrescenta um estresse e um cansaço suplementar àquilo que já é natural numa situação tão crítica como essa. É uma MP absolutamente danosa: ataca os rendimentos do trabalho, as formas de negociação coletiva, a jornada regular de trabalho e as condições de saúde do trabalhador. Não tem nenhum parágrafo em toda a MP que favoreça, de fato, o trabalhador. É uma MP completamente desenhada pelo setor empresarial, em especial, o de serviços. É uma MP que precisa ser revogada inteiramente.
O senhor acredita que ela veio num momento de crise de forma proposital?
Essa é uma clássica estratégia de capitalismo de desastre. Cria-se um estado de exceção, portanto, uma oportunidade para atacar qualquer tipo de proteção trabalhista, social, ligada aos direitos do trabalho. Isso já estava em curso desde o governo Temer e foi aprofundado com o fim do Ministério do Trabalho. Ataca a fiscalização, o desmonte de toda forma de representação sindical. Representa um projeto de desmanche da sociedade salarial brasileira e da segurança para setores dos trabalhadores que antes alcançavam algum tipo de proteção. Dentro desse bojo, tem a reforma administrativa que foi encaminhada para o Congresso debater. Uma reforma que ataca flagrantemente o serviço público, tornando-o muito precário e inseguro. Praticamente coloca um fim no que conhecemos como concurso público, estabilidade, ataca os salários, os benefícios e a carreira. Não podemos nos esquecer da proposta de trabalho promovida pela carteira verde e amarela, que seria destinada aos jovens, mas, na verdade, representa uma enorme transferência de rendimentos do trabalho para o capital sem criação de novos empregos. Tudo isso tem a ver com essa agenda ultraneoliberal, que implica um ataque inédito à classe trabalhadora e a qualquer forma de proteção social e de direito trabalhista. É um pouco chover no molhado do que a gente vem denunciando há muito tempo. Mas a MP completa a reforma trabalhista do Michel Temer e avança no projeto de desmanche da sociedade salarial brasileira, que o ministro Paulo Guedes representa como nenhum outro. É um desmonte generalizado da perspectiva de se ter a associação entre direitos sociais e justiça distributiva, direitos sociais e salários.
A justificativa da MP é a necessidade de se garantir os empregos nesse momento de crise sanitária. Qual a sua avaliação sobre isso?
Numa situação como essa que a gente está vivendo e segundo raciocínio do presidente e falas de técnicos do governo, essa é uma maneira de preservar emprego, mas preserva estatística de emprego. Eles estão olhando lá na frente, para daqui a quatro ou cinco meses, quando dirão que não houve demissões. Isso só preserva a estatística do emprego. Trazendo para o mundo real e concreto, numa situação como essa que estamos vivendo, a suspensão de contratos sem nenhuma contrapartida para o trabalhador não se sustenta. Para o trabalhador, é até mais interessante ser demitido do que ter suspensão de salário. Porque assim ele pode receber o fundo de garantia, pode ter acesso a algum tipo de renda com a qual ele pudesse utilizar ao longo desses próximos meses… Quando você suspende o contrato de trabalho e não dá nenhuma garantia, dizendo que daqui a quatro meses eles voltarão à normalidade, do ponto de vista da força de trabalho, isso é um desastre completo. É o pior dos mundos. Você vai para casa sem nenhum tipo de renda. É uma armadilha.
Há estratégias adotadas em outros países que possam ser eficazes na nossa realidade diante da epidemia?
No momento, há algumas iniciativas possíveis, como [a adoção do] imposto de grandes fortunas, que poderia trazer cerca de R$ 270 bilhões de dinheiro novo. Esse dinheiro seria distribuído entre o Ministério da Saúde e [a criação de] uma renda mínima universal. A partir daí, pode-se elaborar um plano de recuperação econômica. Esse é o plano mais razoável. Os governos do mundo todo estão fazendo isso. O salário social tem sido implementado na Inglaterra, Estados Unidos, diversos países. O voucher que [Donald] Trump anunciou é uma iniciativa de emergência plausível. Muitos vão perguntar de onde tirar esse dinheiro. Onde está a gordura? A resposta é nas grandes fortunas, no imposto sobre herança que não existe no país. Há diversos lugares de onde podemos trazer dinheiro novo. Depende apenas da vontade política. É taxar os ricos para amortecer o impacto naqueles setores mais vulneráveis. Tem que garantir Bolsa Família, BPC [Benefício de Prestação Continuada] e o estabelecimento de uma renda mínima, isso é o mínimo. E o financiamento disso tudo fica a cargo daqueles que podem mais. Estamos diante de um cenário que requer solidariedade.
Existe um descolamento entre as ações dos governadores sul-sudeste e nordeste e o governo federal. Dentro do campo do trabalho, o que eles podem fazer em termos de proteção aos trabalhadores?
Os governadores devem olhar basicamente para os trabalhadores informais. Tem que ter política de transferência de renda para aqueles com pequenos negócios, os que têm seus trabalhos nas ruas. Essa massa não é contada como desempregados, é uma massa de 40 milhões de pessoas que, provavelmente, estão nas cidades. Essa população vai estar sujeita a um estresse nos próximos meses e os governadores devem olhar diretamente para essa população. O auxílio anunciado pelo Ministério da Economia de R$ 200 é irrisório. Vale lembrar que o princípio é correto, caso seja efetivado, porque atende àquelas pessoas que não têm nenhum tipo de assistência nem vínculo de trabalho. Não adianta apenas dizer para essa massa que elas precisam ir para casa porque elas não sobrevivem em casa. Ela depende basicamente da rua. Esse é o setor-chave para a contenção da disseminação do vírus hoje.
Como pode-se explicar o recuo do governo em relação à MP 927 em menos de 24 horas?
Do ponto de vista técnico, a retirada do parágrafo 18 não muda quase nada. O parágrafo 2 já deixa a possibilidade de se fazer um contrato entre o trabalhador e o empregador nesse período de calamidade pública. Ou seja, se a empresa resolver pagar um auxílio de R$ 100 ou R$ 200 para que o trabalhador fique em casa, essa situação estaria legitimada pela Medida Provisória em vigor. O que é necessário fazer é suspender toda a Medida Provisória, em particular esse parágrafo mencionado, porque abre um flanco para essas empresas abusarem da possibilidade de economizar salário nesse momento de flagrante crise social. A experiência internacional mostra que as empresas utilizam esses momentos para fazer ajustes que, fundamentalmente, transferem o ônus da crise dos seus balanços para os trabalhadores. É papel do Estado estabelecer os limites e proteger os trabalhadores, mas não é isso que estamos vendo. Estamos dando carta branca para que as empresas possam fazer o que elas querem.
Num contexto como esse em que uma parcela dos trabalhadores, como os da saúde, segurança, limpeza e comunicação, estão expostos a um maior risco de contrair o vírus, essas áreas ditas como essenciais, quais as consequências de uma MP que flexibiliza a segurança do trabalho e a jornada?
Apesar de a situação ser de emergência e calamidade, uma parcela de trabalhadores que estão na linha de frente, principalmente os da saúde, precisa ter formas de trabalho saudáveis. Caso contrário, não só o risco aumenta como também aumenta a proliferação. Não podemos expor esse trabalhador, que já está numa situação de estresse e fadiga extrema, a um ambiente de insegurança. Dentro de um contexto desse, sem uma mínima proteção, ele pode não ser capaz de definir uma situação de risco, de seguir um protocolo e pode acabar virando um vetor de disseminação do vírus porque está na linha de frente. A flexibilização da jornada de trabalho hoje vai na contracorrente daquilo que deveria ser adotado pelo governo, que é uma regulamentação muito precisa. Essa MP flexibiliza ainda mais o regime, que já é muito flexibilizado.
E como fica a questão do teletrabalho? Uma das críticas é que a MP responsabiliza o trabalhador para que tenha os equipamentos necessários para manter a mesma produtividade. Outro ponto é a falta do controle de jornada…
É a pior forma de se implementar o teletrabalho porque não houve um período prévio de preparação para que o trabalhador fizesse uma transição para o trabalho remoto. Para além disso, os lares não foram estruturados, não existe propriamente um acesso à tecnologia da informação, não existe uma estruturação da vida privada que permita que o trabalhador possa se dedicar e concentrar no trabalho. É natural que a produtividade caia, que os projetos não se desenvolvam, que o trabalhador não se sinta estimulado. Aparece uma série de inconveniências que estão ligadas ao ambiente doméstico, e que são obstáculos para o desenvolvimento de um desempenho dentro da normalidade profissional. É o pior momento de experimentar o teletrabalho, o trabalho remoto. Não tem como migrar de um dia para o outro todo um setor de uma empresa e cobrar como se nada tivesse mudado. A internet não funciona, as crianças estão em casa, os horários não estão controlados, tem a carga de estresse por conta da conjuntura. É preciso reconhecer que haverá uma queda de produtividade. O teletrabalho neste momento é absolutamente emergencial e não pode servir de parâmetro futuramente.
Fonte: EPSJV/Fiocruz