Quem escuta as afirmações de Jair Bolsonaro contra o isolamento social para controle do coronavírus pode imaginar que o combate à fome, de alguma forma, seja pauta do governo federal. A temática, no entanto, nunca fez parte do repertório do capitão reformado, nem mesmo durante a campanha eleitoral. Se hoje Bolsonaro fala que “A Fome mata mais que o vírus”, há menos de um ano ele negava o problema no Brasil. Em julho do ano passado, chegou a dizer que, com base “no que a gente vê por aí” não há pessoas que sofrem com a escassez de alimentos no país.
“Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas com um físico esquelético como a gente vê em alguns outros países aí pelo mundo”
A falta de preocupação com uma das parcelas mais vulneráveis da população vem sendo traduzida em um desmonte de órgãos e políticas sociais para o combate ao problema. No primeiro mês ocupando o Palácio do Planalto, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional a partir de uma Medida Provisória. O órgão fazia parte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e contava com a participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas de acesso à nutrição adequada.
Leia mais: Bolsonaro promove desmonte das políticas de combate à fome
A nutricionista e pesquisadora Elisabetta Recine, indicada pela sociedade civil como presidenta do Consea em 2017, afirma que foi feita uma análise dos planos de governo durante a campanha eleitoral e que o planejamento de Bolsonaro não contemplava o assunto. Ela ressalta que dados do IBGE vem mostrando que a curva de retirada das pessoas da pobreza e da extrema pobreza no Brasil está caindo e atualmente 35 milhões de brasileiros encaram o problema.
“Quando esses programas e essas políticas são enfraquecidos, a estrutura desigual do Brasil se recompõe rapidamente. As pessoas que estavam, ao longo de uma década e meia, saindo da faixa da pobreza e da extrema pobreza, voltam imediatamente, porque não dá tempo de elas estruturem as suas vidas para terem resiliência diante de uma situação como essa.”
Leia mais: Pobreza extrema aumenta 11% no último ano; economistas culpam trabalho informal
Ela explica que, mesmo as políticas emergenciais para transferência de renda que vem sendo anunciadas terão dificuldades de implementação.
“Quando a pandemia chega ao Brasil, ela chega em um momento de extrema fragilidade de políticas públicas. O que já era ruim chegam em um contexto em que o Brasil não tem margem de manobra para lidar com isso. O conjunto de conselhos de políticas públicas foi extinto. Ele é a ponte do poder público com a sociedade. É dentro do espaço de participação e de controle social que a sociedade civil tem condições de colocar suas demandas, suas propostas, seus olhares da realidade. Foi aprovada a proposta de renda mínima, por exemplo, mas há um monte de gente fora do cadastro único e o governo não consegue acessar essas pessoas porque ele não tem canais.”
Leia mais: Bolsonaro autoriza redução ou suspensão de até 70% do salário durante pandemia
O professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Renato Maluf, afirma que o governo não tem compromisso com o combate à fome. Ele cita a postura adotada diante da lei de transferência de renda emergencial, aprovada pelo congresso. A equipe de Bolsonaro chegou a sugerir metade do valor proposto pelos parlamentares. Não houve esforço para aprovação imediata do texto, no que parece ser uma estratégia da área econômica.
“A questão é que fomos assaltados por grupos, alguns até com feições de gangue. É mais do que desmontar programas, estão desmontando o Estado. Essa é a intenção última e maior. Olha esse episódio da renda básica. É escandaloso ver o governo dizer que não consegue liberar o dinheiro. A imagem que eu tenho é o Paulo Guedes e sua turma se apegando até onde puder em um dos últimos instrumentos de poder que eles tinham. Um ministro da economia que teve uma proposta aprovada contra a vontade dele, em um processo do qual ele não participou e vai ser obrigado a assinar o cheque? Isso para ele é a morte.”
Leia mais: Artigo | Paulo Guedes: o amigo do Mercado
Segundo Renato, a pandemia expõe o desmonte das diversas políticas sociais, praticado pelo governo do capitão reformado. O coronavírus mostra que a atuação do poder público é essencial e que a lógica privatista cai por terra diante de crises desse porte
“O que a pandemia está mostrando é que o estado é absolutamente essencial e que a lógica privada ou privatista é capaz de produzir muitos danos e não é capaz de enfrentar problemas públicos (…) Não venha o Bolsonaro dizer que está sensibilizado com a fome. Se estivesse mesmo não teria feito as maldades ele fez ao longo do governo.”
Leia mais: Bolsonaro não libera auxílio de R$ 600 para trabalhadores e anuncia nova MP
Sociedade civil apresenta propostas
Frente à crise, cerca de 150 organizações da sociedade civil elaboraram um documento com propostas de ações emergenciais (Clique aqui para ler o documento na integra). A agilidade na implementação da renda básica emergencial está entre elas. O texto cita também a necessidade de criação de comitês emergenciais para o combate à fome, a recomposição imediata do orçamento da saúde e a garantia do abastecimento alimentar.
Sem a disposição do governo federal para o diálogo, a proposta será apresentada para o Congresso Nacional e enviada para que conselhos estaduais e municipais discutam o tema com os governos locais.
Leia mais: Quais são as medidas adotadas por cada estado brasileiro contra o coronavírus
Elisabetta afirma que a pandemia dá visibilidade a escolhas feitas pelo governo de maneira brutal.
“O governo federal, do ponto de vista da sua hierarquia maior, está de costas para a agenda de segurança alimentar e nutricional desde que a presidenta Dilma Rousseff foi retirada da presidência. Durante um certo tempo cumprimos a nossa função de manter o diálogo, mas a medida provisória que extinguiu o Consea foi um recado único e não há diálogo com o governo federal.”
O documento propõe também a revogação da emenda do teto de gastos, a Continuidade e adequação das estratégias do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por meio da distribuição direta de alimentos às famílias, políticas emergenciais para agricultura familiar e pescadores artesanais. As organizações ressaltam que a solução passa necessariamente pela recomposição dos mecanismos de assistência social, desmontados pelo governo.
“Essa emergência deixará graves consequências e ninguém mais poderá fechar os olhos frente a essa realidade. Os danos serão maiores ou menores dependendo da vontade política e capacidade de resposta dos governantes e de cada um de nós.” Ressalta o texto.