A chegada da epidemia de coronavírus no Brasil tem mostrado, mais uma vez, como nosso país é desigual. Em Belo Horizonte (MG), enquanto a população de bairros mais ricos e de classe média entram em quarentena e tomam cuidados de higienização, nas favelas a situação é bem diferente. As condições de vida tornam impossível que a população periférica siga a maioria das orientações de prevenção dos órgãos públicos.
O aglomerado da Serra, que tem aproximadamente 50 mil habitantes, é um dos maiores complexos de favelas do Brasil, sendo certamente o maior de Minas Gerais. Padre Chico, que é morador da Serra, afirma que a vida no aglomerado parece normal, comércios estão funcionando e pessoas continuam se relacionando nas ruas, com a exceção de poucas que estão ficando em casa.
Ele ainda destaca que, assim como acontece em outras comunidades, a quarentena pode colocar os moradores em contato constante com muitos familiares. “Aqui tem famílias que moram com cinco pessoas, em dois cômodos pequenos, não há condição de fazer quarentena. Ainda não fomos atingidos, não aconteceu nenhum caso no aglomerado, mas se acontece o primeiro caso certamente é muito mais contagioso”, opina. Ele ainda diz que, por enquanto, não viu nenhuma ação firme do poder público.
Já na Pedreira Prado Lopes, a favela mais antiga de Belo Horizonte e que hoje tem quase 9 mil habitantes, a pior parte é a “incógnita” em relação à possibilidade de casos confirmados no local, diz Jairo Nascimento Moreira, presidente da Associação Comunitária do bairro Santo André. Na opinião do líder comunitário, a prefeitura de BH não está tendo transparência na divulgação dos dados de pessoas infectadas.
“Quase todos os dias chegam ao meu conhecimento informações de pessoas que estão com vírus, porém, a prefeitura regional não confirma esses dados. Eles afirmam que não existe caso aqui na Pedreira, coisa que eu questiono”, defende. A Pedreira fica a apenas 2 km do centro da capital mineira. Jairo acredita que a divulgação dos casos confirmados por região da cidade pode fazer com que a população nas favelas intensifique ou comece suas ações de prevenção.
O mesmo afirma o morador do Cabana do Pai Tomás, favela de BH com quase 18 mil habitantes. “Diminuiu muito a presença do povo na rua, mas uma quarentena radical não aconteceu. Tem muita gente na rua na avenida Independência, na padaria, açougue, supermercado…”, conta o Padre Manoel Godoy, da Paróquia São Tarcísio, que está fechada, no Nova Cintra.
O padre ainda externa a sua preocupação com as finanças da comunidade. “A gente vê nos órgãos governamentais que a grande questão é essa: economia ou saúde. Mas o povo simples não pode fazer essa escolha. A gente tem que entender a rotina do povo: praticamente, ganha no dia o que consome no próprio dia. Então, um dia sem trabalho é um dia sem comer”, diz.
Na sua opinião, a melhor alternativa é a distribuição das rendas emergenciais em valor justo. “O máximo que esse governo falou é que vai liberar R$ 200 por mês para cada família. Ora, se acha que R$ 200 dá para alimentar uma família, ele está vivendo em um outro planeta. Isso é falta de governo”, diz padre Manoel.
Um estudo do Data Favela, feito esta semana, mostrou que 86% das pessoas que moram em favelas terão dificuldade de comprar comida já no primeiro mês de quarentena. Para 32%, as dificuldades começam já na primeira semana. No Brasil, aproximadamente 13,6 milhões de pessoas moram em favelas.
Como a prefeitura está agindo?
De acordo com o Boletim Epidemiológico do governo de Minas, desta quinta (26), Belo Horizonte tem 96 casos confirmados de covid-19, e o estado já registra 17.409 casos suspeitos.
Questionada pela reportagem, a prefeitura de Belo Horizonte informou as ações no âmbito da saúde: “todos os 152 Centros de Saúde e as nove Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) da capital estão preparados para atender a população. Está em funcionamento também, o centro especializado, na UPA Centro-Sul e, em breve, serão abertas mais duas unidades, sendo uma no Barreiro e outra em Venda Nova”. Destaca ainda que a cidade conta com 5.671 leitos hospitalares, sendo 992 de tratamento intensivo (UTI).
Uma medida do poder municipal que pode ter mais influência nas vidas nas favelas será a distribuição de 140 mil cestas de alimentos às famílias de estudantes de escolas municipais. A medida continua durante o período de suspensão das aulas por conta da pandemia. Os supermercados serão definidos pela prefeitura e informados às famílias, levando em consideração o local da moradia.
A prefeitura ainda anunciou a distribuição de produtos de limpeza e higiene aos moradores de vilas, favelas e ocupações que estão inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) – renda familiar mensal de até meio salário mínimo por pessoa ou renda familiar total até três salários mínimos. Será distribuído um kit mensal por família cadastrada, o que deve beneficiar 160 mil pessoas, segundo a PBH, por meio de farmácias ainda não divulgadas.
O que poderia ser feito
A presidenta do Conselho Municipal de Saúde, Carla Anunciatta, reforça, no entanto, a necessidade de que a PBH tenha um plano de prevenção específico para a população de vilas e favelas, o que até agora não foi demonstrado. “É preciso ter uma interlocução entre as áreas da prefeitura: alimentação, educação, saúde, saneamento, urbanização, meio ambiente. Não adianta só orientar que não pode ficar aglomerado, que não pode ter contato físico, se elas estão em um ambiente que isso não é possível?”, questiona.
O conselho já solicitou à prefeitura um plano de prevenção específico para moradores de rua, penitenciárias e moradores de vilas e favelas. Assim como sugerir que os boletins epidemiológicos municipais sejam atualizados todos os dias com a incidência em cada regional.
“Estamos em uma crise sanitária e vamos ter que assumir atitudes de solidariedade. Se até hoje nós nunca pensamos nas pessoas que estão dormindo no frio, morando em aglomerados, agora a gente tem que repensar e todos temos a responsabilidade social para minimizar esses problemas”, diz Carla. “Pois como já diz a música de João Gilberto, ‘é impossível ser feliz sozinho’”.