Uma resolução do governo federal, publicada no Diário Oficial da União (DOU) da última sexta-feira (27), assinada pelo general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, anuncia que o Brasil removerá, em meio à pandemia do coronavírus, as comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão. A área ocupada pelas famílias será utilizada para expandir o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), um convênio que Jair Bolsonaro já firmou com os Estados Unidos.
A remoção deve prejudicar, de acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), aproximadamente 800 famílias. A medida foi criticada por movimentos sociais e pelo governo do Maranhão, que pediu respeito às comunidades, que estão no território desde o século XVII.
“Primeiro, é preciso cuidado, pelo contexto de uma pandemia, em que a prioridade deve ser cuidar das pessoas e não de fragilizar suas condições de vida. Segundo, esse comitê, de acordo com a convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), não deveria ter tomado nenhuma decisão de remover populações, antes de consultar as comunidades locais. Terceira, o governo federal deve resolver os passivos derivados de remanejamentos anteriores, com graves prejuízos às comunidades quilombolas. O comitê tomou essa decisão antes de concluir os trabalhos do grupo técnico”, afirma Francisco Gonçalves da Conceição, secretário de Direitos Humanos e Participação Popular do governo estadual do Maranhão.
Em nota, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), Movimento da Associação do Território Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), o Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara e o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE), entre outros, condenaram a medida.
“Consideramos a medida arbitrária e totalmente ilegal, uma vez que afronta diversos dispositivos legais de proteção dos direitos das comunidades remanescentes de quilombo, bem como, tratados e convenções interacionais referidos aos direitos destas comunidades”, explicam os movimentos, que reafirmaram o desejo de permanecer no local.
“Por fim, não admitimos quaisquer possibilidades de deslocamentos reafirmamos nossa irrestrita e ampla defesa às comunidades quilombolas de Alcântara no direito de permanecer no seu território tradicional na sua inteireza e plenitude. Acionaremos todos os meios e medidas possíveis para resguardá-las”, encerra a nota.
Para o cientista político Danilo Serejo, membro do Conaq e do Mabe, o governo federal, ao determinar a remoção, é “racista”.
“Estamos vendo isso com bastante preocupação, porque esse processo todo foi feito sem que fosse feito um processo transparente com as comunidades quilombolas de Alcântara. Então, autorizar a remoção sem cumprir nenhuma das garantias previstas no direito brasileiro e internacional é muito complicado. Verticalizar essa decisão em cima das vidas quilombolas de Alcântara só mostra como esse governo é autoritário e racista”, afirma Serejo.
Na resolução, o general Heleno anuncia que a Aeronáutica fará as remoções das famílias e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) ficará encarregado do reassentamento das famílias em outra área. O governo não determinou uma data para a retirada dos quilombolas de seus territórios, mas a medida será tomada antes da conclusão dos estudos técnicos do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro, que teve o prazo final prorrogado em 180 dias.
Histórico de remoções
Em 1983, 312 famílias de quilombolas foram expulsas de seu território, em Alcântara, uma península do Maranhão, e transferidos para agrovilas mais ao sul do estado. Lá, ganharam lotes de 16 hectares. Três anos antes, o então governador do estado, Ivar Saldanha (PDS), desapropriou 52 mil hectares do território que era ocupado pelos quilombolas e os entregou para a União. A medida fazia parte do projeto de construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), encampado pelo ditador João Batista Figueiredo (1979-1985) e administrado pela Força Aérea Brasileira (FAB).
Os quilombolas expulsos de seus territórios foram transportados para agrovilas localizadas no interior do estado, em uma região coberta por areia e de solo estéril. Nos quilombos, a pesca garantia o sustento da comunidade e ditava a dinâmica de organização do local. “Não sei nem porque chama ‘agrovila’, de agro não tem nada. É um projeto que deu errado. Eu moro em uma das agrovilas, nunca deu certo, nos colocaram em um lugar onde não temos como nos sustentar”, explica Antônio Marcos Pinho Diniz, presidente do sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara.
Em 1991, o ex-presidente Fernando Collor desapropriou mais 10 mil hectares de Alcântara para a construção do CLA, totalizando 62 mil hectares.
Já no ano de 2008, o jogo virou em favor das famílias quilombolas. Um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação elaborado pelo Incra, garantiu 78,1 mil hectares da região para as comunidades quilombolas e limitou o espaço da base aérea a 8 mil hectares.
Em 2010, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Estado reivindicou outros 12 mil hectares na área costeira de Alcântara. A nova aquisição nunca foi confirmada, mas as 792 famílias de quilombolas que vivem na região vivem, desde então, com medo dessa possibilidade.
Em março de 2019, Brasil e Estados Unidos firmam um contrato que garante aos estadounidenses o direito de explorar a base de Alcântara. O acordo prevê salvaguardas tecnológicas e permite o lançamento de foguetes e satélites na região.
A possibilidade de ampliação da área do CLA, — que hoje é de 8 mil hectares — está prevista no documento. Isso fez com que os quilombolas se mobilizassem para conseguir definitivamente a titulação de suas terras, o que lhes garantiria estabilidade na região e poder em uma futura negociação com o Estado.