Isolado politicamente e desgastado com protestos diários que pedem sua saída do poder, Bolsonaro aposta cada vez mais na sustentação dos militares ao seu governo e acenou aos saudosos da ditadura ao negar, nesta terça-feira (31), o golpe que jogou o país em um regime de exceção que durou 21 anos.
“A verdade: o Marechal foi eleito de acordo com a Constituição e não houve golpe em 31 de março”, postou o presidente em seu perfil no Facebook.
Ao olhar para este 1º de abril de 2020, data em que se rememoram os 56 anos do golpe militar no país, a servidora pública Rosa Cimiana conta que cultiva temor e preocupação. As aflições de Cimiana hoje são reeditadas e ganham corpo diante do governo do presidente Jair Bolsonaro, que tem como traço a presença ostensiva de militares em diferentes postos de comando político e assessoramento.
“Eu nunca vi tanto milico como estou vendo hoje. É por todo lugar aonde você vai. Eles saíram todos do armário e nunca, nem na ditadura militar, havia tantos milicos em postos-chave como hoje”, afirma, ao dizer que já não consegue contar com quantos fardados esbarra todos os dias pelos corredores do Congresso Nacional, onde trabalha atualmente.
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Hoje com 60 anos, Cimiana traz no repertório décadas de uma enérgica e destacada militância em defesa da garantia de direitos.
Anistiada política, quando olha pelo retrovisor e resgata as memórias da época em que liberdade era um artigo de luxo no Brasil, com a ditadura militar (1964 – 1985) em cena e a pleno vapor, ela conta que a emoção parece um freio indomável.
Vinda de uma família com atuação política, dona Rosa, como é conhecida nos bastidores da política em Brasília, perdeu o pai e o irmão durante o período.
Então presidente da Cooperativa de Ferroviários de Santa Maria (RS) e militante do Partido Comunista, seu pai Arthur Pereira da Silva foi preso por mais de uma vez e veio a falecer em 1982, de morte natural, mas com o corpo e a mente maltratados pela brutalidade que marcou o período. Já o irmão, de tanto conviver com a dor e o risco sempre iminente de uma nova prisão do pai, desistiu da caminhada em 1976.
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“Meu pai nunca mais foi o mesmo, nenhum de nós lá em casa foi o mesmo depois do suicídio do meu irmão. Meu pai já tinha perdido o Herzog [Vladimir Herzog, jornalista morto pela ditadura], e eles se comunicavam muito. O Herzog foi morto em 1975, então, foi muito difícil pra nós”, desabafa, ao narrar as dores subsequentes causadas pelo regime.
Um breve raio-x da gestão Bolsonaro ajuda a embasar a inquietação da ativista: somente nos ministérios, os militares representam mais de 36% dos principais postos de comando, controlando oito das 22 pastas.
Além disso, ocupam cargos estratégicos mais diretamente ligados ao Palácio do Planalto, de cujas salas despacham atualmente os generais Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Walter Souza Braga Neto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). O major da Polícia Militar do Distrito Federal Jorge Oliveira também entra na conta, atuando na Secretaria-Geral da Presidência da República, assim como o vice-presidente, Hamilton Mourão.
A presença marcante de membros das Forças Armadas no governo se faz sentir ainda em outros espaços da gestão, como os cargos de chefia e assessoria ligados ao Poder Executivo, que abarcam também algumas atividades junto ao Poder Legislativo.
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Nesses postos, o governo Bolsonaro tinha, somente nos primeiros nove meses do mandato, 2.500 militares, segundo levantamento feito na época pelo jornal Folha de S. Paulo, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Professor do Instituto Federal do Ceará (IFCE), o historiador Airton de Farias aponta que a configuração atual é um tanto diferente do que se deu no país após a derrocada do regime militar, quando as Forças Armadas ficaram mais ofuscadas e isoladas de espaços importantes de decisão política.
No intervalo entre o fim da ditadura e a história mais recente do país, ele destaca que “raríssimos militares” conseguiram ocupar cargos estratégicos no Executivo, considerando o leque de possibilidades que vai desde as empresas estatais até o mais alto escalão governamental.
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“Isso, na verdade, não foi muito aceito dentro da corporação, especialmente entre a geração de militares que imaginava que poderia galgar cargos e poder no final dos anos 1970 e nos anos 1980. Coincidência ou não, nessa geração é que estava o então capitão Bolsonaro”, afirma Farias, que assina o livro Um Olhar Sobre os Governos Militares, entre outros títulos.
“Animação militar”
Para o também historiador e ex-deputado federal Manuel Domingos Neto, o Brasil que hoje relembra sem saudade o golpe de 1964 é o mesmo país que não soube sufocar, na história recente, o que chama de “animação dos militares”.
“Durante todo esse período de redemocratização ou de democracia, a formação dos militares, a cabeça deles, as suas narrativas não foram mexidas, não foram tocadas. No máximo, eles silenciaram, ficaram hibernando e surgem com um reacionarismo gritante nos últimos anos”, analisa o professor, ao mencionar a força e a presença da doutrina militar no país em tempos contemporâneos.
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Na visão do historiador, o retorno de agentes das Forças Armadas a espaços táticos de decisão política demanda também ângulos mais complexos de análise, não podendo se resumir ao peso ainda dado aos enredos criados pela ala militar.
Mas, para Domingos Neto, não é possível subdimensionar o papel que tem, no cenário político, a relação que o país mantém com a memória e os crimes cometidos pela ditadura.
“Sem dúvida, o fato de não ter havido uma prestação de contas, esses panos quentes em cima da tortura contribuíram pra ferocidade com a qual eles retornam agora, paraninfando um regime infame. E, no dia de hoje, nós temos uma ordem como essa do ministro da Defesa, que é repugnante”, diz, em referência a uma mensagem oficial editada na noite da última segunda-feira (30) por Fernando Azevedo.
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No texto, que foi duramente criticado por múltiplos especialistas, atores políticos e sociais, o ministro se refere ao golpe militar como “movimento de 1964” e o qualifica como um “marco para a democracia”, acenando para os agentes que receberiam a mensagem nos quartéis esta semana.
“Não é preciso ser genial para entender que essa ordem do ministro Fernando é um acinte. Como é que o sujeito assina um papel dizendo ‘instalamos uma ditadura pra defender a democracia’? Isso é ridículo, não tem fundamento, não tem cabimento”, exclama Domingos Neto, para quem o Estado brasileiro teria concedido uma “autonomia exagerada” às Forças Armadas nos últimos tempos.
Assista entrevista em vídeo com o historiador:
“Esse período ditatorial no Brasil inicia com uma mentira. Eles sempre mentiram, e mentem inclusive na data. Eles já chamaram o golpe militar de ‘revolução’ também. A primeira das subversões é a subversão da palavra ”, acrescenta o histórico militante de direitos humanos Jair Krischke, ao mencionar o fato de o golpe ter se iniciado em 1º de abril de 1964, mas ter sido registrado pelos agentes como um acontecimento do dia 31 de março – a manobra discursiva seria uma forma de evitar que a aventura política caísse na chacota, uma vez que o 1º de abril é tradicionalmente associado ao espirituoso Dia da Mentira.
Institucionalidade
Para Krischke, que é fundador e dirigente do Movimento Justiça e Direitos Humanos, a mais antiga organização atuante no Brasil nessa área, chamam atenção também outros aspectos das ações dos militares que hoje tomam decisões entre as paredes do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios.
Ele menciona como exemplo o fato de alguns interlocutores do segmento estarem ajudando a “manter pelo menos a institucionalidade” em meio ao governo Bolsonaro, marcado pelo caos político e pela inconstância na relação com governadores, parlamentares e outros grupos.
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Krischke cita como expoente de destaque o assessor do Gabinete de Segurança Institucional Eduardo Villas Bôas, que goza de grande influência e prestígio entre os colegas de farda.
Comandante do Exército entre 2015 e 2019, o general seguiu na liderança da instituição mesmo após ser acometido por uma doença degenerativa que o colocou numa cadeira de rodas. O ativista destaca o temor que havia, nos bastidores, especialmente por parte do general, com a sua saída do cargo.
A ameaça estaria na eventual chegada ao poder dos seus dois prováveis sucessores à linha de frente do Exército, que eram tidos como figuras pouco simpáticas ao regime democrático. O terceiro da fila, general Edson Pujol, assumiu o posto em janeiro de 2019, no início do governo Bolsonaro, após a aposentadoria compulsória dos dois. O atual comandante é tido como alguém mais discreto e moderado.
“Ele [Villas Bôas] ficou sentado na sua cadeira de rodas até esses dois irem pra casa e ele poder fazer como seu sucessor o general Pujol, que está aí no comando. Isso chama por demais a atenção”, realça Krischke.
Outro episódio que ganhou os holofotes se deu na última segunda-feira (30), quando, após ser visitado por Bolsonaro, Villas Bôas postou no Twitter uma mensagem que gerou uma série de comentários e faíscas. Sem dizer exatamente a que se referia, o ex-comandante afirmou que o presidente “não tem outra motivação que não o bem-estar do povo e o futuro do país”.
— General Villas Boas (@Gen_VillasBoas) March 30, 2020
A postagem veio acompanhada ainda de trechos como o de que o país “vive um momento especial e muito grave” e outro segundo o qual “ações extremadas podem acarretar consequências imprevisíveis”.
A publicação suscitou uma série de leituras sobre uma possível referência à adoção do isolamento social como prática de combate ao coronavírus – medida que colocou o presidente na berlinda por defender o retorno da população à normalidade, à revelia das diretrizes do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em outras possíveis camadas de análise, o texto do ex-comandante do Exército seria uma tentativa de “segurar o presidente” diante dos riscos institucionais que rondam o país, especialmente por conta dos constantes e inconsequentes arroubos de autoritarismo do mandatário.
“Pode parecer até um elogio ao Bolsonaro, mas eu acho que não. Há situações, eu costumo dizer isso brincando, em que não basta ser alfabetizado. Tem que saber ler. Ele não avalizou o Bolsonaro. Apenas está muito preocupado em manter a institucionalidade quando um presidente não tem sequer compostura para o exercício do cargo”, interpreta o fundador do Movimento Justiça e Direitos Humanos, acrescentando que o país vive “um momento muito complexo”.
Heterogeneidade
Dentro desse mesmo arcabouço de análise, o professor Airton de Farias assinala que o segmento militar não tem perfil homogêneo, sendo marcado por assimetrias político-ideológicas que chamam atenção ao longo da trajetória das Forças Armadas no Brasil.
“Nunca foram e não são iguais. Em 1964, você tinha, por exemplo, militares de esquerda – alguns comunistas, inclusive –, que, lógico, vão pagar um preço muito alto. Vários passaram pra aposentadoria, pra reserva, outros foram presos, outros entraram em grupos armados de resistência, de caráter nacionalista”, sublinha.
O historiador frisa ainda que as diferenças se manifestavam também, por exemplo, diante da aliança com o capital estrangeiro, vigorosamente defendida por uma ala mais liberal que ficou conhecida como “grupo da Sorbonne” ou “castelista”, em referência ao general e ditador Castelo Branco (1964-1967), entusiasta dessa tendência.
“E havia também um grupo mais linha-dura, mais nacionalista, que, embora não visse o capital estrangeiro como inimigo, acreditava que caberia ao Estado ter um papel decisivo – era um nacionalismo bem conservador – pra incrementar a prosperidade e a soberania nacional”, acrescenta Farias.
Foi esse o traço que pareceu se manifestar, quando, por exemplo, no primeiro mês do governo Bolsonaro, surgiram rumores de que o país permitiria aos estadunidenses a instalação de uma base militar própria em solo brasileiro.
A cogitação veio dez meses antes de o Congresso Nacional aprovar o controverso Acordo de Alcântara, e o núcleo militar do governo ocupou-se de tentar sepultar a ideia com base na defesa da soberania nacional, um elemento geralmente caro à doutrina das Forças Armadas.
Airton de Farias pontua que, em geral, em seu histórico de 27 anos como deputado federal, Bolsonaro carregou essa marca, com a manifestação de posições nacionalistas em determinados momentos.
Na primeira votação do Acordo de Alcântara, por exemplo, ocorrida em 2001, chegou a votar contra a proposta. Na época, o capitão era suplente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.
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O historiador registra que o atual presidente da República teria passado a absorver um discurso e práticas mais liberais diante da aliança que orquestrou para tentar chegar ao poder.
O arranjo envolveu grandes empresários, ruralistas, veículos de massa e outros setores que seguem a rota da doutrina liberal, o que tem dado ao seu governo um ponto de conflito constante entre a agenda do ministro da Economia, o ultraliberal Paulo Guedes, e setores militares mais tradicionais, de forma semelhante ao que se deu na época do regime militar.
“Se ele [o presidente] é sincero nesse liberalismo dele, não sei. O tempo talvez vá mostrar, mas é certo que, muitas vezes, o Guedes e as suas medidas de caráter liberal são freadas por pressão do Bolsonaro e desses militares, digamos, mais linha-dura, que ainda apresentam concepção de um Estado senão totalmente intervencionista, mas pelo menos um Estado que atue em algumas áreas tidas como estratégicas pra esses grupos da caserna”, finaliza Farias.