SÃO PAULO – O setor de turismo é notoriamente um dos mais afetados pelos efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus. Mas para além das companhias aéreas e cancelamentos de voos, um elemento desse mercado sofre consequências diferentes: o setor de fidelidade.
Segundo dados da Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização (Abemf), em termos de utilização, 79,6% das milhas disponíveis no mercado são destinadas a compra de passagens aéreas.
Mas mesmo com o número de viagens domésticas e internacionais em níveis muito baixos, o setor não está paralisado: das pessoas que estão com milhas acumuladas neste momento, a maioria está encontrando na venda uma fonte de renda extra, outra parcela está pensando em acumular mais para usar para viagens futuras, e, ainda, uma terceira (e menor) parte está aproveitando os pontos extras para trocar por produtos.
Mas qual a melhor solução neste momento? O cliente tem algumas opções.
Venda de pontos
A emissão de passagens aéreas caiu e abriu espaço para as outras formas de utilização das milhas, como a compra e venda, que vem movimentando o setor nesse período de crise.
Tahiana D´Egmont, sócia e CMO da MaxMilhas, uma plataforma de pesquisa, comparação e intermediação de passagens aéreas, afirma que houve uma redução na procura dos viajantes por passagens dado o momento e um aumento justamente na venda de milhas.
“Percebemos um aumento das pessoas querendo vender suas milhas para complementar renda, visto que o período é incerto e toda oportunidade de usar um recurso que você já tem para ganhar dinheiro extra é muito bem-vinda”, disse em entrevista ao InfoMoney.
Rodrigo Góes, especialista em milhas, afirma que nesse cenário adverso que o país enfrenta, as pessoas estão vendendo as milhas que já possuem para ganhar um dinheiro extra. “Como a maioria das pessoas não vai viajar agora, não veem sentido em acumular mais milhas. Assim, optam por vender e ganhar um lucro”, explica.
A venda de milhas acontece por meio de sites intermediadores como o Max Milhas, ou por meio de sites que apenas compram as milhas dos usuários, como o Hotmilhas – que o InfoMoney também tentou contatar, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
Na prática, um usuário que tem milhas acumuladas pode se cadastrar em sites desse tipo e vender o que possui para a própria plataforma ou para outro usuário que queira converter as milhas em passagens aéreas – embora hoje esse fatia de compradores seja pequena.
Com mais oferta, cotação cai
Fernando Costa, empresário de Salvador, possuía algumas milhas, aproveitou promoções de transferências dos programas de fidelidade e ganhou um dinheiro extra.
“Eu fiz uma compra grande no cartão e acumulei milhas. Nesse momento, aproveitei uma promoção de programa de fidelidade para tirar um lucro interessante em cima disso”, diz.
As milhas são comercializadas em conjuntos de 1.000, o chamado “milheiro”, que tem uma cotação diária. Cada programa de fidelidade possui a cotação de seus pontos em diferentes sites de comercialização. O usuário pode fazer a cotação em diferentes sites e optar pelo que oferecer o maior valor nas milhas, para que ele ganhe mais dinheiro.
Assim, por exemplo, mil pontos na Multiplus no dia 29 de fevereiro valiam R$ 30,90, no MaxMilhas, enquanto que nesta segunda-feira (30) a maior cotação está em R$ 28,11 no site ComproMilhas, uma queda de 9%, dado o cenário que o país enfrenta. Assim, teria sido mais vantajoso para o usuário ter vendido em fevereiro do que agora.
E houve dias de queda ainda mais brusca. Em 25 de março, na Multiplus, mil milhas estavam cotadas a R$ 26,84, 12% a menos do que o mesmo 29 de fevereiro – ou seja, os pontos teriam se desvalorizado ainda mais. Nos dos dois exemplos, os valores eram os mais altos das respectivas datas.
Costa diz que negociou suas milhas mesmo com a cotação mais baixa. “Eu acompanhei e vi uma alta no dia que fechei. Achei que valia a pena e ganhei quase 4 mil vendendo 140 mil milhas em um momento de instabilidade”, diz.
O empresário acompanha o mercado e faz vendas periódicas. “Eu aprendi estratégias de acúmulo, então juntei bastante e vou vendendo. Meu planejamento de viagem que seria para esse ano certamente não vai acontecer, então, como não tenho outro objetivo, faz sentido vender”, afirma.
Acúmulo de pontos
Alexandre Zylberstajn, sócio do site Passageiro de Primeira, afirma que o melhor uso das milhas é para viagens e defende que as pessoas devem continuar acumulando.
“É praticamente uma outra moeda a que muito mais pessoas poderiam ter acesso, mas por falta de conhecimento, não usam. O mercado de turismo enfrenta dificuldades, e viajar não é possibilidade por enquanto. No entanto, as pessoas podem continuar acumulando milhas normalmente para usar mais para frente”, diz.
A Abemf também recomenda o acúmulo. “Mesmo em um momento em que as pessoas tenham restrições para trocar seus pontos ou milhas por viagens imediatas, por exemplo, ainda existe a possibilidade de resgatar passagens aéreas para períodos futuros ou mesmo usar o saldo acumulado para a aquisição de produtos e serviços”, explica João Pedro Paro Neto, presidente da Abemf.
Segundo ele, a associação e parceiras estão acompanhando as informações referentes à disseminação da Covid-19 no Brasil, no mundo e suas consequências, e “algumas iniciativas por parte dos programas já foram colocadas em prática, como a remarcação de passagens e a prorrogação dos prazos para expiração dos pontos/milhas, por exemplo. A orientação é que o participante fique atento aos comunicados enviados por seu programa de fidelidade e utilize os canais de comunicação para acompanhar as ações de cada empresa”, diz.
Segundo ele, não é preciso aumentar gastos nesse momento, mas direcionar suas compras habituais para estabelecimentos que oferecem a possibilidade de acumular. “Há campanhas de incentivo que concedem pontos extras para cada real gasto, por exemplo. Estar atento a essas oportunidades é uma boa estratégia neste momento”, complementa Neto.
É isso que Oswaldo Luiz, assessor de investimentos, está fazendo nos últimos dias. “Eu acompanho o mercado de milhas e aproveitei uma promoção de transferência bonificada de 100% e com 12 meses de carência. Então, eu dobro minha quantidade de milhas e ainda estendo o prazo de vencimento só de transferir de um programa para o outro. Como está rolando muita promoção devido ao coronavírus, estou aproveitando que tenho pontos acumulados para juntar ainda mais. Lá na frente posso usar para viajar gastando quase nada”, afirma.
De acordo com dados da Abemf, 89,4% do acúmulo de milhas é proveniente do cartão de crédito no Brasil, e mesmo em casa as pessoas seguem gastando e gerando pontos.
Zylberstajn explica que as pessoas precisam entender que as milhas estão no nosso cotidiano. Os programas permitem que no dia a dia acumulemos pontos com parceiros. Por exemplo, a Livelo tem um link com o Carrefour em que se o usuário acumula pontos da compra do supermercado. Smiles oferece crédito na Uber, e é liberado para usar no delivery da Uber Eats, alguns programas tem parcerias com varejistas, entre outras vantagens”.
Luiz conta que acumula pontos justamente no dia a dia, aproveitando essas parcerias, além do serviço do Clube Livelo, um plano de assinatura do programa de fidelidade. “Agora estou gastando minhas despesas no cartão para acumular mais pontos e aguardo algumas promoções ou possibilidades de ganhar ainda mais no Clube Livelo. Mas já comprei um tênis, três camisas, duas bermudas e um par de meia pela Netshoes porque estava era uma promoção de 10 pontos a cada R$ 1. Juntei 4.500 pontos com o cartão”, diz.
Troca por produtos
Góes afirma que a troca de pontos por produtos é a que oferece o menor custo-benefício. “Você consegue vender as milhas e, geralmente, com o que ganha consegue comprar mais de um produto. Não vale a pena, mas muitas pessoas deixam dinheiro na mesa nesses momentos porque não sabem das possibilidade do mercado de milhas”, diz o especialista.
Zylberstajn explica que hoje o custo-benefício dessa troca pode não ser dos melhores, mas que os programas de fidelidade devem começar fazer ofertas mais justas depois da crise. “Acredito que os programas de fidelidade vão expandir as oportunidades para ficarem cada vez menos dependentes do turismo. E isso vai incluir melhores ofertas de produtos, ou seja, menos milhas serão necessárias para conseguir pegar uma cafeteira, por exemplo, ou terão novos serviços. Só que é provável que esse seja um aprendizado e não terá efeito imediato”, comenta.
Afinal, devo vender ou acumular milhas agora?
Se o usuário optar por vender, deve ficar atento às questões do mercado e dos possíveis riscos, além de avaliar se o custo-benefício está valendo.
“Com uma cotação mais baixa que o normal, a vantagem de vender agora é se a pessoa realmente está precisando do dinheiro. Mas se o usuário não precisa do dinheiro com urgência ou se as milhas não forem vencer agora, é melhor esperar para vender mais para frente quando a cotação vai subir e será mais vantajoso”, afirma.
Zylberstajn defende que a melhor saída agora é aproveitar e acumular. “As companhias aéreas, programas de fidelidade e hotéis devem oferecer ótimos negócios depois que a crise passar para tentar recuperar o que perderam. E ter uma boa quantidade de milhas será um diferencial para conseguir fechar viagens com valores muito acessíveis”, diz.
Regulamentação do mercado de milhas
As pessoas que acumulam milhas e ao invés de trocá-las por passagens, vendem e embolsam o lucro regularmente são chamadas de “milheiros” – algumas pessoas até vivem disso. Mas as companhias aéreas e os próprios programas de fidelidade não concordam com a prática. O problema é que não uma regulamentação.
Como a venda de milhas para terceiros necessita do fornecimento de login e senha, para que os sites emitam passagens aéreas utilizando-se dos dados pessoais desses participantes, Neto, presidente da Abemf, afirma que “isso facilita a ocorrência de fraudes, motivo pelo qual é vedada esta prática nos regulamentos dos programas de fidelidade”.
“Entre os associados, já foram registrados casos de reclamação de clientes que tiveram seus pontos/milhas resgatados sem autorização, nos quais ficaram comprovados que houve a venda e o compartilhamento dos dados de acesso. Nesses casos, o participante pode ter um problema ainda maior, ficando sem o saldo que acumulou”, afirma o executivo.
Não existe uma lei proibindo a venda de milhas, mas é um tema polêmico já que o mercado de milhas não foi criado com objetivo de lucro.
Zylberstajn explica que hoje o ativo em si está muito acessível. “Justamente pelos programas de fidelidade permitirem que o usuário compre milhões de pontos ao ano, surge uma contradição: ninguém consegue usar tantas milhas assim. Então, as pessoas passam a enxergar oportunidade na venda, mesmo sabendo das vedações previstas nos contratos de adesão. Por isso, hoje algumas empresas começaram a limitar esse acúmulo por CPFs”, afirma.
Rodrigo Góes, especialista em milhas, acredita que o mercado ainda não foi regulamentado porque é uma relação de ganha-ganha para o consumidor final. “As próprias companhias aéreas vendem mais caro e incentivam o usuário a buscar melhores preços. Sem contar que hoje pagamos imposto sobre os ganhos advindos das milhas, se enquadra em ganho de capital, se você lucra acima de R$ 30 mil por mês. Não é errado, há brechas e as pessoas podem lucrar com isso”, afirma.
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