No Rio de Janeiro (RJ), a primeira morte registrada em decorrência do coronavírus tem classe e sexo: trata-se de uma empregada doméstica que trabalhava no Leblon, um bairro nobre da “cidade maravilhosa”. O desfecho trágico dessa história nos revela algo preocupante: para alguns trabalhadores, aderir à quarentena não é uma opção. Liberdade é a possibilidade que temos de fazer escolhas concretas, entre alternativas que também são concretas. E, para a significativa maioria dos trabalhadores brasileiros, esta “escolha” parece girar em torno de “opções” muito restritas: ignorar a quarentena e seguir trabalhando para ter um salário que, minimamente, supra algumas necessidades elementares (mesmo sob o risco de contrair e/ou disseminar o vírus) ou, permanecer em casa, em quarentena, mas sem os proventos financeiros proporcionados pela atividade laboral. E você, caro leitor, o que elegeria?
Na verdade, na particularidade brasileira, a aceitação de ofertas de emprego em quaisquer condições, sempre foi favorecida pelo elevado nível de desemprego e pelas dificuldades de inserção dos trabalhadores no mercado formal de trabalho. Esta é uma marca histórica de nossa formação social. No contexto de avanço da pandemia este traço se reforça: grande parte dos trabalhadores que “aceitam” seguir trabalhando não o fazem por terem um poder especial de imunidade contra o covid-19, o fazem porque necessitam sobreviver, de alguma forma. Entre nós, a provocação de Albert Camus faz todo o sentido: “O trabalho […] não era uma virtude, mas uma necessidade que, para permitir viver, levava à morte. Era […] o privilégio da servidão”.
Assim, os trabalhadores dos supermercados, os garis, os frentistas dos postos de combustíveis, os entregadores de produtos, os trabalhadores do telemarketing e de outros tantos ramos – submetidos, inclusive, às perversas modalidades contratuais aprovadas com a contrarreforma trabalhista, em 2017 – continuam ocupando seus postos, sob condições extremamente adversas. Diante desse quadro, uma das soluções inicialmente propostas pelo governo Bolsonaro foi possibilitar, a partir de acordos individuais entre trabalhadores e empregados, a redução da jornada de trabalho e dos salários em até 50%. No dia de ontem (22), foi publicada uma Medida Provisória (MP 927) sistematizando um conjunto de ações que, supostamente, deveriam permitir atenuar à crise. A falta de sintonia entre as medidas formuladas pelo governo e as reais necessidades dos trabalhadores é gritante. A título de exemplo, uma das indicações desta MP – revogada algumas horas depois de sua publicação – outorgava aos empregadores a possibilidade de suspenderem (sem remuneração salarial) os contratos de trabalho de seus funcionários por um período de até quatro meses. Mas, a MP 927 não se esgota com a prescrição anulada. E, por isso mesmo, é preciso questionar: as medidas que foram conservadas poderão, efetivamente, contribuir para amenizar o problema? E mais: há, diante delas, alguma possibilidade real de escolha por parte dos empregados?
Os trabalhadores informais e/ou autônomos também estão sendo extremamente prejudicados. Os dados do segundo trimestre de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicaram um aumento de cerca de 3,6% desse contingente em relação ao primeiro trimestre do mesmo ano. Isso significa reconhecer a existência de um expressivo número de homens e mulheres que, mesmo antes da pandemia, já estavam inseridos em deletérias relações de trabalho, com proventos extremamente reduzidos, incertos e trabalhando sem atender a nenhum dos requisitos estabelecidos pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT).
Nesse sentido, o quadro de avanço do coronavírus pelo Brasil aprofunda e complexifica ainda mais as incertezas, as carências e as inseguranças desses trabalhadores. Para estes “desassistidos”, a medida proposta pelo governo é a de destinar 200 reais de auxílio mensal, desde que eles não estejam inscritos em outro benefício ou programa social que lhes confira algum tipo de recurso financeiro. Aqui, novamente, trata-se de uma providência que não encontra nexo com a realidade.
E os desempregados? De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua (janeiro de 2020) esta população soma quase 12 milhões de trabalhadores. Estes sujeitos não poderão ter quarentena, estão alijados de recursos financeiros e, muitas vezes, não têm condições de atender aos mínimos cuidados de segurança e prevenção indicados pelas agências brasileiras de saúde. São, por isso mesmo, os maiores impactados com esta conjuntura e, para alguns deles, as consequências por sua condição socioeconômica serão incomensuráveis.
Enquanto redijo estas linhas, a pandemia segue avançando e afeta, com maior intensidade, as trabalhadoras e os trabalhadores precarizados e desempregados. Nesse momento, precisamos pensar em mecanismos efetivos de proteção para estes sujeitos, porque, infelizmente, eles não estão conseguindo “optar” pela quarentena.
As forças progressistas da sociedade brasileira têm feito importantes apontamentos sobre o tema e, inclusive, estão construído plataformas com medidas interessantes para incidir em meio a esta situação, observando, sobretudo, a condição dos segmentos de trabalhadores mais prejudicados. Tais medidas passam, de forma geral, pela revogação da Emenda Constitucional 55/2016 (popularmente conhecida como “PEC do fim do mundo”), pela defesa e aprofundamento de investimentos nas políticas públicas e, mais especificamente, no âmbito do Sistema Único de Saúde, pela anistia de dívidas relacionadas às despesas básicas de água, luz e gás neste momento de crise e, também, pela estruturação de mecanismos consistentes de defesa dos empregos.
Por isso, enfatizo: é preciso ouvir o que as forças progressistas do Brasil estão formulando e debatendo, pois os setores dominantes desta sociedade não têm, como já alertou Marx, “[…] a menor consideração com a saúde e com a vida do trabalhador, a não ser quando a sociedade o compele a respeitá-las. À queixa sobre a degradação física e mental, morte prematura, suplício do trabalho levado até a completa exaustão responde[m]: por que nos atormentaremos com esses sofrimentos se eles aumentam nossos lucros?”
*Hiago Trindade é professor do Curso de Serviço Social da UFCG.