Tenente-Coronel Nascimento, comandante do BOPE, do presídio Bangu I (por telefone) – “Comandante, a gente tá tendo uma oportunidade boa aqui”.
Comandante da Polícia Militar, no Palácio do Governo (por telefone) – “Nascimento, só um minuto, que pra isso eu preciso da permissão do governador. Só um minuto”.
O comandante entra na sala do governador.
Comandante da Polícia Militar – “Com licença. O Comando Vermelho matou as principais cabeças do ADA. O Nascimento tá pedindo autorização pra entrar e terminar o serviço”.
Secretário de Segurança Pública – “Isso é uma boa ideia, governador. Já resolve esse problema de uma vez”.
Assessor do governador – “E a população vai apoiar, governador. Ninguém mais aguenta esses filhos da p*”.
Quem assistiu o filme Tropa de Elite 2 se lembrará do diálogo nos primeiros minutos da trama ficcional. Uma rebelião no Estado do Rio de Janeiro converteu-se em oportunidade para um massacre levado à cabo por agentes de segurança pública.
O diálogo nunca existiu, mas é verossímil. Retrata uma maneira de pensar e de agir que tem força na sociedade brasileira.
Em 2013, quando o massacre do Carandiru completou 20 anos, o Datafolha perguntou aos paulistanos sobre o episódio no qual foram assassinados 111 detentos. Naquele momento, ainda que a maioria (54%) dos moradores da capital paulista tenham dito que a Polícia Militar agiu errado, significativos 36% responderam que os policiais agiram certo.
A pesquisa foi realizada na semana anterior ao início dos julgamentos dos policiais envolvidos no massacre. Condenados, os réus ainda não foram penalizados: em 2018, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo anulou os julgamentos.
Não sabemos o que os paulistanos diriam hoje. Será que a percepção mudou de 2013 para cá? O vento que soprou sobre o Brasil nos últimos anos não oferece um quadro animador.
Tanto a cena e seus desdobramentos no filme que foi sucesso de bilheteria, como a pesquisa realizada em 2013 voltam a ecoar com a epidemia do coronavírus. Como proteger a população carcerária? O debate foi aberto no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e no STF, enquanto Estados se dividem sobre o que fazer. Já no submundo das redes sociais, relatos dão conta de que pessoas estão torcendo abertamente para que o flagelo dizime a população carcerária.
Na última sexta-feira (20/3), em entrevista à Folha de S. Paulo, o ministro da justiça Sérgio Moro tocou no assunto. Moro foi questionado pelos jornalistas Leandro Colon e Fábio Fabrini sobre como proteger os presos contra o coronavírus. Num momento em que crescem os ataques à imprensa, a entrevista é um bom exemplo de um jornalismo sério e profissional. Já as respostas de Moro devem ser examinadas com cuidado.
O jornal deu destaque à opinião do ministro segundo a qual a soltura de presos colocaria em risco a população, bem como à promessa de vacinação dos detentos contra a gripe, de modo que o contágio do novo vírus não seja confundido com uma simples gripe. No entanto, o mais importante nas respostas de Moro não foi ressaltado na manchete.
Segundo o ministro, “pode-se avaliar até uma ampliação da prisão domiciliar para parte da população carcerária, mas essas questões não devem se precipitadas, até porque, segundo relatório que recebi nesta quinta, não existe nenhum registro de preso infectado com coronavírus no Brasil”. Na mesma direção, Moro ainda afirmou: “Não podemos parar a segurança pública e a administração por uma epidemia que ainda não chegou nos presídios”. Os destaques são meus.
As expressões empregadas não deixam margem para dúvida: para o ministro de Bolsonaro, a estratégia a se adotar é esperar que a epidemia chegue às prisões para, só então, considerar a soltura de presos. Antes disso, não haveria razão para a medida.
A posição de Moro enseja uma série de questões.
Moro crê que apenas um ou outro preso será contagiado e que o vírus não se alastrará? Ele imagina que os agentes conseguirão identificar cada preso contaminado, isolá-lo devidamente e tratá-lo antes que contamine outros? O ex-magistrado não tem dado ouvidos aos especialistas e às autoridades sanitárias e não sabe que, quando o vírus chegar às prisões, inevitavelmente muitos serão contaminados?
Se sabe, então qual é o plano? Apenas privá-los de visitas? E ainda que proteja familiares e amigos, essa medida implica em privá-los de alimentos e remédios. Quanto aos contaminados, o isolamento será feito por cortinas, como foi noticiado? Com base em que protocolo médico? Qual infectologista atesta a eficácia dessa medida? Haverá ambulâncias para conduzir todos que necessitarem aos hospitais? A considerar a imunidade dos presos, é de se crer que não são poucos os que necessitarão.
Ou, se a ideia é que a prisão seja convertida em domiciliar só depois de o vírus chegar às prisões, não é grande o risco de os presos transmitirem o vírus para seus familiares, em casa? Não será mais um fator de disseminação do vírus nas periferias?
Nada parece fazer sentido.
Tenho ciência de que a questão da soltura de presos envolve pontos difíceis. Todos os presos deveriam ser soltos? Haveria algum cenário que justificasse uma soltura geral e irrestrita, inclusive de presos por crimes violentos ou com grave ameaça, como aqueles condenados por homicídio, latrocínio, sequestro e estupro? Estamos perto ou longe disso? Essas são questões delicadas.
De todo modo, para além da obviedade de que o Estado tem o dever de proteger os presos contra a epidemia, valendo-se para isso de todos os recursos que se fizerem necessários, duas coisas são certas: primeiro, a superlotação favorece a transmissão; segundo, dos mais de 800 mil presos do país, a maioria foi presa por tráfico de drogas e outros crimes que não representam risco à vida e à integridade física, como furto. O caso do ladrão de salames que foi enviado à prisão por um desembargador do TJSP – o mesmo que votou pela anulação do massacre do Carandiru – está longe de ser uma exceção.
Moro não se eximiu desse problema na entrevista que concedeu na última sexta, mas sua resposta contém um artifício retórico que induz o leitor a erro.
Questionado pelos repórteres da Folha se seria contra qualquer tipo de soltura, o ex-juiz de primeira instância respondeu: “Estamos falando de todo tráfico de drogas, basicamente. Grande parte dos grandes traficantes foram condenados só por tráfico. E vamos soltar todos os traficantes do país? Não faz sentido”. O destaque é meu.
Se estamos falando basicamente do tráfico de drogas, por que falar em “grandes” traficantes, quando se sabe que estes representam uma ínfima minoria dos presos por tráfico? Por que a exceção é usada como exemplo, e não a regra? Faz sentido?
O ex-juiz da Lava Jato quer que acreditemos que a questão se resumiria a soltar ou não soltar “grandes” traficantes, quando a verdadeira questão não é essa.
Não estou certo se a maior parte dos grandes traficantes do Brasil encontra-se presa. Tenho certeza, no entanto, de que a grande maioria dos presos por tráfico não são grandes traficantes. Ao contrário, a imensa maioria foi presa portando pequenas ou até mesmo ínfimas quantidades.
Muitos nem sequer são traficantes regulares. Segundo o defensor público da união Gustavo Ribeiro, em declaração à matéria do G1, “em relação ao tráfico, qualquer circunstância é usada para manter o regime mais gravoso. Grande parte não tem histórico e são presos com pequenas quantidades de droga”.
Quem conhece de perto o problema sabe do que Ribeiro está falando. Nos tribunais brasileiros, o tráfico de drogas é frequentemente estigmatizado como um “perigo à sociedade”. Reverbera essa ideia o fato de, na lei, o tráfico ser equiparável aos assim chamados “crimes hediondos”.
Tanto quanto é um fato notório que quem vende e acaba preso possui um perfil muito bem definido (jovens, pobres, negros ou pardos), é igualmente um fato que a maior parte dos que compram e consomem drogas situa-se nos andares mais altos da pirâmide social, no que se incluem pessoas que gozam de prestígio, poder e autoridade.
No entanto, na mídia e nos tribunais, a venda de drogas é tida como um “perigo para a sociedade”. Faz sentido? A hipocrisia complementa a histeria coletiva contra as drogas e ressoa o racismo estrutural e sistêmico, outro vírus que nos acomete, só que há mais tempo.
O apelo feito por Moro na mesma entrevista reverbera esse estado de coisas: “não podemos, a pretexto de proteger a população prisional, vulnerar excessivamente a população que está fora das prisões”.
Ao fazer essa afirmação, o ex-magistrado espera que aceitemos sem refletir o pressuposto do qual ele parte: que a maioria da população prisional representa um perigo para a população que está fora das prisões.
Representa? Devemos aceitar essa ideia como uma verdade? Levando-se em conta quem são os quase 900 mil presos e por que se encontram em prisões, sobretudo que a maioria foi presa por tráfico e portando pequenas quantidades de droga, é razoável supor que a soltura da maior parte representará um perigo para a população?
A dúvida é mais do que válida em situação de normalidade e tem sido levantada há tempos. Muitos consideram que a pena privativa de liberdade deveria ser aplicada apenas para determinados casos, ao passo que no Brasil seu emprego é abusivo.
O debate sobre penas alternativas existe, ainda que alguns o ignorem. E não é de hoje que a guerra às drogas tem sido colocada em questão, não só no Brasil, mas em todos os países. Não há uma única proposta e as posições são muitas. As experiências internacionais estão aí para serem examinadas e discutidas, inclusive no nosso vizinho Uruguai.
Tudo isso, no entanto, diz respeito ao debate público em situação de normalidade. Com a chegada do coronavírus e os cenários terríveis de curto e médio prazo, o debate precisa ser colocado em outro patamar. Que palavra usar para classificar a opção de negar a liberdade a presos que não representam ameaça alguma à integridade física e à vida quando uma epidemia gravíssima atinge o Brasil e, seguramente, chegará às prisões?
Manteremos uma população de centenas de milhares de pessoas encarceradas, esperando que muitos – dezenas ou centenas de milhares – sejam contaminados, num ambiente insalubre e de superlotação e no qual os serviços de saúde pública são mais que precários, ou os colocaremos em liberdade imediatamente, permitindo que tenham mais chances de sobreviver?
Ou concordaremos que sejam soltos depois do contágio, para que, doentes, contaminem seus familiares? Vamos levar a sério os direitos humanos ou vamos esperar que se realize mais um massacre do Carandiru, multiplicado sabe-se lá por quantas vezes?
Não nos enganemos. Querendo ou não, a decisão inevitavelmente envolverá um parecer sobre a seguinte questão: os milhares de jovens presos por vender drogas são de fato um perigo para a sociedade? Nós realmente acreditamos nisso? Esse discurso prevalecerá mesmo no quadro atual? A epidemia colocou a sociedade brasileira em uma encruzilhada e a obriga a escolher um caminho.
As declarações de Moro à Folha têm uma vantagem inestimável. Ele tocou na ferida, ainda que sua intenção tenha sido outra: ao mencionar o tráfico, Moro jogou luz sobre o fato de não ser suficiente a soltura de pessoas acima de determinada idade, portadores de doenças crônicas, gestantes, presos em regime aberto ou semiaberto ou próximos disso, ou presos provisórios, desde que não acusados de crime hediondo. No dia anterior à entrevista de Moro, o Editorial da Folha já alertava para a necessidade de a lista ser ampliada, sem, no entanto, especificar que outros grupos de presos deveriam ser beneficiados.
O problema maior reside na Lei de Crimes Hediondos. Atendendo ao clamor de histéricos de toda sorte, nossos legisladores equipararam tráfico a “crime hediondo”. Ocorre que a maior parte dos presos encontra-se encarcerada por tráfico. E agora?
O fato de Moro ter precisado fazer menção ao tráfico é sinal de que a questão está sobre a mesa. E o fato de ter precisado apelar aos “grandes” traficantes para persuadir o leitor de que “não faz sentido” soltar condenados por tráfico – sendo que parte dos presos nem sequer foi julgada e condenada – é sinal de que ele sabe da fragilidade de sua posição.
Não é razoável para a média da população que, no atual quadro de epidemia e com o que se projeta para as próximas semanas, pessoas presas por portar pequenas quantidades de droga sejam contaminados e morram atrás das grades. Nem que sejam soltos só depois de terem contraído o vírus para, em casa, contaminem seus familiares e vizinhos.
Cabe à sociedade brasileira dar a resposta. Todos estão com a palavra. Mas a decisão final cabe a alguns apenas. Por bem, nem o ministro da justiça nem seu chefe são os únicos responsáveis por ela.
Em tempo: “epidemia com resultado morte” é considerado “crime hediondo”, tipificado na famigerada Lei de Crimes Hediondos. E a população carcerária encontra-se sob tutela do Estado. Se nada ou muito pouco for feito, será alarmante o número dos que serão contaminados e dos que morrerão. Haverá aplausos no submundo das redes sociais. Mas será um crime. E os responsáveis terão de responder.
Que aqueles que têm em suas mãos o poder de decisão tomem a decisão correta, e que seja rápido, pois a chegada da epidemia nas prisões é uma questão de poucos dias ou horas.
*Antônio David, historiador, é professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP.